A PESQUISA
A primeira manhã, o acordar embriagado pela ausência. Há silêncio e caos, confusão emocional, física e mental, o corpo sente uma dor Aguda. Ao longo do dia a personagem é atravessada por sensações que a levam a uma espécie de epifania.
Aguda é uma peça-filme que nasce do desejo de investigar as possíveis fricções, fronteiras e fusões entre as linguagens do cinema e do teatro, tendo como tema poético deflagrador o Amor. O projeto foi contemplado pelo Fundo de Cultura do Estado de Pernambuco e a partir desse incentivo foi possível criar a obra em formato audiovisual com duração de 13 minutos, cópias acessíveis e realizar a temporada online, que acontecerá entre os dias 20 e 29 de fevereiro de 2024.
O amor é uma das emoções mais complexas de falar, explicar ou definir, como disse Caymmi “de amor para entender, é preciso amar”. Inspiração de canções, histórias, romances, filmes e novelas. Talvez o amor seja o mais instigante objeto do pensamento “quer-se o amor, vive-se o amor, exalta-se o amor, mas quase nunca o definimos.” (WOLFF, p.20). Está presente nas reflexões das várias correntes filosóficas, para Plantão “amor é essa força que nos empurra para fora de nós mesmos” e para Espinosa “o amor é a alegria que tem como causa algo do exterior.”
Esse exercício de definir o Amor, por mais ingrato que pareça, é engrandecedor, pois esse sentimento é entendido/sentido com a experiência, a partir da ação. Os pesquisadores das artes da cena costumam se referir ao Amor como estado e não como emoção, a partir dele derivam muitas variações como: paixão, desejo, carinho, amizade, etc. Para o atuante é um grande desafio encontrar a medida certa do Amor vivido pela sua personagem, afinal são muitas as nuances. O aprofundamento de técnicas, os ensaios, o treinamento em sala de trabalho, a frequência são motores para o artista da cena encontrar essa dose. Assim como a prática pro trabalho do performer é fundamental, a prática é o principal exercício do amor.
Nas atuais pesquisas das artes da cena, Aguda se encaixa no que hoje está sendo compreendido como cena expandida. “Aquela que não se circunscreve apenas ao fazer teatral, como àquele associado aos modos de produção e recepção teatrais convencionais, mas também se articula diretamente a áreas artísticas distintas em uma espécie de convergência que tangencia conhecimentos oriundos das artes cênicas, visuais, das mídias audiovisuais, da performance, da dança, da literatura, da fotografia.” (MONTEIRO, 2016, p.40)
O estado, a ação física e a repetição são comuns ao cinema e ao teatro, por isso, nesta pesquisa eles são como pontos de fusão entre as linguagens. Já o jogo cênico, a partir da imagem, da narrativa e do som são como pontos de fricção, se tocam, se aquecem, geram força de atrito, mas cada uma das linguagens tem seus possíveis caminhos e recursos de criação semiótica e sinestésica. Já os textos, no caso da dramaturgia teatral e do roteiro cinematográfico, são como pontos de fronteira, mesmo possuindo os mesmos gêneros (drama, épico ou lírico), cada um deles tem estruturas específicas de escrita que os diferenciam.
Para o desenvolvimento da dramaturgia de Aguda, o documento escrito para ser compartilhado com a equipe foi chamado de Esqueleto. Um texto com uma estrutura narrativa dividida em cenas, indicações de rubrica, de imagens, ações físicas e estados. Invés de três atos, esse documento, possui três sequências determinadas pelo gênero: a primeira o drama, através das ações físicas; a segunda a épica, por meio do texto e da quebra da quarta parede e a terceira a lírica, com o sonho e a epifania do eu-lírico. A partir desse Esqueleto foi possível dialogar cinematograficamente e teatralmente com a equipe.
Quando amamos, algo se movimenta, começa de um jeito e termina de outro, o amor sempre transforma. Assim como a experiência teatral e cinematográfica do público ao assistir a obra, naquele instante da presença algo acontece e se modifica. Para Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil, o que nos torna realmente humanos é ”a emoção que sentimos frente a outro humano” e o público é o que há de melhor, pois ele vai ao teatro para alimentar-se “alimentar a inteligência, os olhos, o coração” (2010, p.142). E isso nos torna mais capazes de amar.
O amor também pode causar muitos danos, se você não tem bons recursos para pensar no que ele é, a razão nos ajuda a ter afetos mais qualificados. É justamente na ausência do objeto amado que podemos viver a aguda experiência de amar e isso não é nada fácil. Por esse motivo, essa foi a escolha narrativa da peça-filme Aguda, a primeira manhã da ausência. A partir do cinema e do teatro, é possível se colocar no lugar da personagem ou se distanciar dela, fazendo reflexões profundas ou vivendo experiências que muitas vezes não se viveria sozinho, pela falta de oportunidade ou também por não se permitir. Não se deseja experimentar a ausência, a dor aguda da falta, mas talvez esteja aí a possibilidade de ter uma grande experiência com o amor, e assim amar verdadeiramente.
Liv Ullmann, grande atriz e diretora, foi casada com Ingmar Bergman e tiveram uma filha e trabalharam juntos, mas foi justamente depois da separação, do tempo de sentir falta, raiva e tristeza, que os dois tornaram-se grandes parceiros e cúmplices, fizeram dez longa-metragens juntos. Ela abordou esse relacionamento amoroso no livro autobiográfico Mutações, de 1976. Em um momento ela descreve a primeira vez que volta com sua filha à casa que morou com Bergman e é recebida pela atual companheira dele. Ela descreve as sensações estranhas, o nó no estômago, o misto de tristeza e alegria e conclui que depois dessa experiência nada mais pode feri-la:
“Nada termina jamais. Onde quer que alguém plante raízes brotadas do seu eu mais puro ou verdadeiro, ali encontrará um lar (…) As pessoas cujas vidas se tocaram precisam renovar contato, mesmo quando seguiram em direções diferentes. Mesmo quando suas novas vidas fazem parte de uma realidade partilhada. Ninguém é dono de ninguém. Juntos, temos um ao outro, a natureza e o tempo.” (1976, p.95)
Amar é verbo transitivo, precisa ser acompanhado por complemento, pois não consegue transmitir uma informação completa sozinho. Aguda, nasce com o desejo de provocar no espectador essa experiência de complemento, de reflexão, de estímulo ao exercício e a prática do amor como revolução pessoal e assim social. E a partir desses pontos de fricção, fronteira e fusão das linguagens do cinema e do teatro, contribuir para as atuais pesquisas no campo da cena expandida, gerando conhecimento a partir da prática artística. A transmissão online da peça-filme expande consideravelmente a abrangência e alcance do Projeto. Tornando, assim, a contribuição cultural da produção artística acessível a um número ainda maior de pessoas e promovendo um debate sobre questões e dilemas próprios da sociedade contemporânea.
ESTÁGIOS
A pesquisa Aguda foi dividida em quatro estágios, sendo eles: Estágio Baleia, Estágio Baía, Estágio Câmara Escura e Estágio Concepção.
A pesquisadora Mayara Millane e o consultor de dramaturgia Elilson se colocaram à deriva, de boca aberta, como uma baleia que abre a boca para se alimentar. Nesse estágio, trocaram textos, leituras, referências de obras, epifanias e escrita.
Pesquisa de campo no litoral do Recôncavo, na Baía de Todos os Santos, mar que inspirou tantas canções de amor. Esse estágio foi feito junto do antropólogo e artista João Caetano Andrade. Através da cartografia sensível, caminhadas pela areia, conversas, leituras e da experiência com festejo popular das Marujadas, chegou a compreensão metafórica da relação do amor com o porto.
Exercício filosófico e tentativa de definir o amor. Mergulho profundo e de cabeça para baixo no exercício de dar forma ao difuso, de encontrar um esqueleto que estruturasse o ponto de partida da criação da peça-filme.
Gestação e parto. Todo processo de criação em si troca e criação com toda a equipe, da pré-produção à pós-produção: ensaios, trocas e pesquisa com assistência de direção, consultor de dramaturgia, direção de fotografia, arte, figurino, som direto, filmagem, montagem, trilha sonora, desenho de som, tratamento de cor, identidade visual, criação do site e redes sociais do projeto e então realização da temporada online.
REFERÊNCIAS
FÉRAL, Josette. Encontros com Ariane Mnouchkine: erguendo um monumento ao efêmero. Editora SENAC São Paulo: Edições SESC SP, 2010.
MONTEIRO, Gabriela Lírio Gurgel. A Cena Expandida: alguns pressupostos para o teatro do século XXI. ARJ–Art Research Journal/Revista de Pesquisa em Artes, v. 3, n. 1, p. 37-49, 2016.
ULLMANN, Liv. Mutações, Editora Círculo do Livro, 1977.
WOLFF, Francis. Não existe amor perfeito. Edições Sesc São Paulo, 2018.